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quinta-feira, dezembro 04, 2003

Heróis americanos (2)
Jessica Lynch é um exemplo típico de herói americano. Quem teve a oportunidade de ler a peça da TIME (infelizmente já não está disponível on-line) sobre Jessica terá deparado imediatamente com uma primeira imagem fantástica (a duas páginas). Jessica, em pose de anjo martirizado (apoiada numa muleta, a imaculada cabeleira loura em penteado de adolescente assexuada), deixa-se fotografar em frente à casa familiar, onde se podem ver, penduradas nas varandas, várias bandeiras americanas (descobriremos depois no artigo que são seis); ao lado dela, um imenso painel anuncia que naquela casa mora um verdadeiro "american hero". Todas estas imagens nos são familiares. Já vimos aquilo em qualquer lado: no Nascido a 4 de Julho ou em um qualquer road movie, quando se apercebe na beira da estrada um painel que nos anuncia a aldeola onde se fez a maior apple pie do mundo. A América tem uma capacidade impressionante de fabricação de heróis patriotas. Desde logo, porque os americanos são genuinamente patriotas. A mão no coração enquanto entoam a Star Spangled Banner não é apenas um gesto de circunstância. Talvez consequência de um passado relativamente curto, formado num imenso melting pot de etnias e culturas, o patriotismo americano é tão forte e sincero, que desperta em nós, europeus blasés, um sorriso irónico e algo desdenhoso. Afinal, quantos de nós sentem uma verdadeira emoção quando toca a Portuguesa? Esse patriotismo pode ter efeitos perversos, claro, mas é simultaneamente uma força enorme que permite aos americanos terem uma fé inabalável nas suas próprias capacidades, enquanto homens e cidadãos. Por isso o facto do heroísmo de Jessica Lynch repousar afinal, segundo parece, numa mentira (ou melhor, num exercício de marketing tipo Wag the dog) é, no fundo, pouco importante. A M16 encravou e Jessica não chegou a disparar um tiro? Os Marines não encontraram um único soldado iraquiano quando a resgataram do hospital? Tinham as chaves do hospital mas preferiram arrombar as portas a pontapé para ficar melhor no filme? Who cares? Jessica sorri, diz que a última coisa de que se lembra antes de ter sido capturada é ter rezado, deixa o fotógrafo visar os buracos de balas que tem na perna e diz: "I’m no hero". Bem pode dizê-lo, o mito está feito, não vale a pena desmentir.

PS: entretanto, o célebre Larry Flynt anunciou ter umas cassetes vídeo onde Jessica apareceria numa tenda no meio do deserto, divertindo-se, talvez em demasia, com dois camaradas de armas. Como se sabe, estas histórias só acrescentam uma dimensão suplementar ao mito, que tem que ter também o seu lado negro. Lembram-se da Laura Palmer?
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